Um conflito de terras, que durava há quase 20 anos, opondo a comunidade de Cubo, no distrito de Massingir, Província de Gaza, e uma empresa de exploração de uma reserva de fauna bravia, conheceu o seu desfecho final esta semana, culminando várias fases de negociações entre as duas partes.
Trata-se da empresa Karingani Game Reserve, sociedade comercial do grupo Twin City-Ecoturismo Limitada, de capitais sul-africanos, que estava em disputa com a comunidade de Cubo, causado por desentendimentos nos limites da área de conservação por um lado, e por outro, por morte de gado bovino, devorado por leões pertencentes à referida reserva.
Após aturadas negociações, que envolveram a mediação da organização Centro Terra Viva (CTV) e entidades governamentais, empresa procedeu finalmente à indemnização dos criadores de gado prejudicados, ao mesmo tempo que aceitou o realinhamento dos limites da área de conservação e sua vedação, nos termos da indicação da comunidade local. A empresa vinha recusando os limites da extensão do seu empreendimento desde 2006, facto que originou revoltas sucessivas da comunidade local, liderada pela sua liderança tradicional.
Realinhamento de limites de acordo com a comunidade local
O realinhamento da área da fazenda do bravio, com o envolvimento dos membros da comunidade de Cubo e do Governo do Distrito de Massingir, teve lugar no passado dia 05 de Março, seguido pela cerimónia do lançamento da primeira pedra, no perímetro por onde será erguida a vedação, naquela área de conservação da biodiversidade.
Por seu lado, a indeminização, no valor de três milhões e vinte e cinco mil meticais (3.025,000,00 Mt), foi entregue aos membros da Associação “Tlharihani vaka Cubo” no passado dia 27 de Fevereiro, por Reinecke Janse Van Rensburg, representante da Karingani Game Reserve.
Nos termos do acordo alcançado, trinta membros da comunidade de Cubo serão recrutados pela Karingani Game Reserve.
O lançamento da primeira pedra, na área a ser vedada, foi testemunhado pelos directores dos Serviços Distritais das Actividades Económicas, Gracinda Carlos, e de Planeamento e Infra-estruturas, Agostinho Malhovo, respectivamente, em representação do Administrador do Distrito de Massingir. A comitiva do Governo Distrital, naquela cerimónia, integrava ainda, os chefes do Posto Administrativo de Massingir-sede, Marcos Sive, e da Localidade de Massingir-sede, Bernardo Bissar.. A comunidade de Cubo esteve representada pelo seu líder, Alion Cubai e pelos membros da Associação Tlharihani va ka Cubo.
Um conflito de 20 anos
Refira-se que o conflito em Cubo surgiu em 1999, ano em que dois cidadãos moçambicanos, nomeadamente, Adolfo Bila e Eugénio Numaio, (este último, na altura Governador da Província de Gaza) tomaram, de foram fraudulenta, uma área de 20.000 hectares de terra pertencente à população local, tendo cada um ficado com 10.000 hectares, destinados ao estabelecimento de fazendas do bravio. Na época, os representantes da comunidade de Cubo teriam assinado um documento, que mais tarde foi considerado acta de consulta comunitária para efeitos de atribuição do Direito de Uso e Aproveitamento da Terra (DUAT), a favor dos dois titulares. Seguiu-se a vedação das duas áreas sem o envolvimento dos membros da comunidade, tendo sido inclusa, na área dos dois titulares, uma faixa de 500 hectares de terra não cedida pelos habitantes daquele povoado. Eugénio Numaio e Adolfo Bila viriam, anos mais tarde, a transferir os seus DUATs para a Twin City Ecoturismo, com a mesma finalidade. A empresa, necessitando de mais terra, estabeleceu uma parceria com a comunidade de Cubo para utilizar uma parcela de 10.000 hectares da sua área delimitada, passando a ocupar 30.000 hectares no total.
O relacionamento entre a Twin City e a comunidade de Cubo nunca foi bom. A população daquele povoado vinha acusando a empresa de incumprimento das promessas feitas, pela cedência dos 10.000 hectares e de não colocação da vedação, num dos perímetros da fazenda do bravio, contiguo a um vale, denominado Xilalane, local onde os habitantes daquele povoado e de outras comunidades na zona cultivam diversas culturas alimentares, durante todo o ano. Xilalane veio a ser disputado pela Karingani Game Reserve e a comunidade de Cubo entre 2014 e 2017, momento em que a empresa apresentou, ao Governo do Distrito de Massingir, a intenção de ocupar a área de 3.000 hectares de terra – que integram Xilalane – alegando que o acesso ao vale era determinante para assegurar o potencial turístico do seu projecto. A população de Cubo rejeitou, veementemente, a pretensão da Karingani Game Reserve tendo a empresa optado por mobilizar o Governo para lograr os seus intentos. Foi nesse contexto que, no dia 23 de Maio de 2017, alguns técnicos da Direcção Nacional das Áreas de Conservação (ANAC), acompanhados pela directora distrital do SDAE de Massingir e pelo chefe do Posto Administrativo de Massingir sede anunciaram que, por decisão do Governo central, o Vale de Xilalane tinha sido transformado em reserva do Estado. Tanto os técnicos do Governo central, como os do Governo distrital foram incapazes de apresentar, à comunidade de Cubo, qualquer justificação para tal proclamação, tendo muito menos conseguido indicar os procedimentos legais seguidos para o efeito. Depois disso, os mesmos técnicos voltaram a terreiro para apresentar àquela comunidade um certificado e um DUAT emitido a favor de Cubo, por iniciativa do Governo provincial sem a participação da população da aldeia. O DUAT entregue à comunidade de Cubo excluía a área do Vale de Xilalane. Estas manobras foram firmemente repelidas pela população daquele povoado e pelo Centro Terra Viva (CTV), organização da sociedade civil que desde 2014 a apoiou na resolução do conflito que mantinha com a Karingani Game Reserve.
Resistência prolongada da comunidade local
Agastada, a comunidade de Cubo reivindicou, de diversas formas, a indemnização pelo gado perdido, a redefinição dos limites da fazenda do bravio da Karingani Game Reserve e vedação da área na totalidade, assim como a manutenção do vale de Xilalane. No dia em que se anunciou a transformação daquela área em reserva do Estado o líder de Cubo despojou-se do seu traje oficial, anunciando que não queria compactuar com injustiças perpetradas pelo próprio Governo. Adicionalmente, a população da aldeia recusou-se a participar no último censo geral da população e habitação, alegando que se as suas exigências não eram atendidas era porque não eram tidos como cidadãos nacionais. Acto contínuo, os membros do partido Frelimo, naquele povoado, renunciaram, publicamente, à sua filiação partidária. Esta atitude despoletou visitas precipitadas da Governadora da Província de Gaza, Stela Pinto Zeca, a 5 de Agosto de 2017 e do Ministro da Terra, Ambiente e Desenvolvimento Rural, Celso Correia, no dia 30 de Agosto do ano passado. Os dois governantes prometeram, na ocasião, resolver o conflito que a comunidade de Cubo tinha com a Karingani Game Reserve, começando por obrigar a empresa a indemnizar os criadores que perderam o seu gado, ao realinhamento dos limites da fazenda do bravio seguido pela colocação da vedação, em toda a sua extensão, com o envolvimento dos membros da comunidade de Cubo.
Satisfeitas todas as exigências, a comunidade daquele povoado e a Karingani Game Reserve estão hoje de mãos dadas e, prevêem, para breve, o arranque do projecto de parceria na construção e exploração de um lodge comunitário, numa área de 10.000 hectares, pertencente à população da aldeia. Na fase de construção deste empreendimento serão contratados, de acordo com Reinecke Janse Van Rensburg, 30 membros da comunidade de Cubo..
Para o CTV, o desfecho do conflito de Cubo mostra que as comunidades rurais requerem ainda um elevado nível de apoio e de intervenção directa de actores externos como é o caso das Organizações Não Governamentais, para a defesa dos seus direitos à terra e a outros recursos naturais. O nível de esforço despendido pelo CTV para a mediação e resolução do conflito de Cubo, processo que decorreu de forma ininterrupta desde finais de 2014 a inícios de 2018, ajuda a esclarecer a dimensão deste problema que não é novo.