Desenvolvimento Comunitário

Desenraizados…de novo?

A crise humanitária suscitada pelo terrorismo em Cabo Delgado tem como sua maior consequência imediata e mais fisicamente visível, a deslocação forçada de vários milhares de famílias, de suas zonas de origem para outras, quiçá mais seguras.

Um discurso e postura das autoridades nacionais que tem vindo a ganhar muito espaço é apelar para que estas famílias considerem o local para onde se refugiaram como sua nova zona de fixação definitiva. Que não devem considerar a sua estada em tais zonas como uma experiência efémera, passageira, mentalmente suplantada por uma expectativa de regresso às terras de origem, assim e quando a paz tiver sido restabelecida.

Esta ideia começou por ser aventada de forma indirecta, quando ao receberem materiais de construção e utensílios agrícolas básicos, os deslocados recebiam instruções para erguerem casas “definitivas” nos locais de refúgio, aonde recebiam alguns talhões de terra para cultivo.

Se este pensamento aparecia apenas aludido em frases de momento, ele tem sido veiculado, já com alguma convicção e formalidade, pelo Prof. Armindo Ngunga, ora transitado de Secretario de Estado de Cabo Delgado para Presidente do Conselho de Administração da Agência de Desenvolvimento Integrado do Norte (ADIN).

Ouvi-o articulando-a de forma mais sistemática durante o programa “Linha Aberta” da Radio Moçambique, do dia 24 de Abril passado, ainda na qualidade de Secretario de Estado, e “li-o” no dia 28 do mesmo mês,, em entrevista à “Voz da Alemanha”, já na qualidade de PCA da ADIN.

Nas palavras do Prof. Ngunga: “decidimos desenhar uma aldeia modelo de desenvolvimento integrado no país, através de uma aldeia que estamos a construir para comunidades de deslocados”. Durante o programa “Linha Directa”, Ngunga terá mencionado a aldeia de reassentamento de Corrane, na Província de Nampula, como a que estaria a servir de modelo. De que forma? Seria uma aldeia com “desenho” formal definitivo, prevendo espaços suficientes para habitação, expansão e infraestruturas sociais.

“Precisamos de garantir o mínimo de dignidade às famílias, porque não há vida provisória” foi a fundamentação filosófica do Prof. Ngunga. E disse mais: que a experiência da guerra dos 16 anos terá mostrado uma tendência bastante forte, dos deslocados de guerra não desejarem regressar aos locais de origem, ora por adaptação aos novos locais de acolhimento, ora porque o regresso trar-lhes-ia de volta memórias, indesejáveis de actos de violência ou crueldade que ai teriam vivido…

Ora, parece-nos um projecto extremamente complexo de se discutir, sobretudo no calor de uma crise humanitária quase clamando por uma Arca de Noé, para socorrer vários milhares de camponeses arrancadas das suas terras à forca das armas!

Uma primeira reação a este projecto pode ser de imediato acolhimento, ante a perspectiva de garantir vida digna aos deslocados, através da criação de condições mínimas de vida nas novas aldeias, através da provisão de infraestruturas sociais básicas, como escolas, centros de saúde, fontenárias, e sobretudo terreno para machambas.

Mas daí a considerar-se, desde logo, que estes deslocados devem encarar as aldeias de acomodação como suas áreas definitivas de residência e de vida…parece ser uma ideia a carecer de melhor ponderação, sob o risco dela traduzir-se em mais um motivo de conflitualidade humana nesta dilacerada província.

Desde logo porque a comparação com experiências da guerra dos 16 anos pode não vir a propósito, já que os deslocados que decidiram fixar-se definitivamente nas zonas de refúgio fizeram-no voluntariamente, tendo escolhido livremente os locais onde ergueram as suas habitações.

Mas no caso especifico da Província de Cabo Delgado, convém sempre lembrar que as rupturas forçadas das populações das suas terras e dos seus habitas naturais tem sido uma das suas maiores provações históricas, há mais de 50 anos e, certamente, um dos factores da prolongada conflitualidade social na região.

As populações de Cabo Delgado, em particular as do planalto maconde, vêm sendo vítimas de processos de destruturação social violenta, desde os anos 1960. Elas foram primeiro violentadas pelo Exercito Colonial Português, quando as confinou em aldeamentos, para os isolar dos guerrilheiros da Frelimo.

Quando chegou a independência, em vez de recuperarem a sua liberdade plena, escolhendo aonde viver, foram impelidas a viver em aldeias comunais, no quadro da nova ordem nacional, “socialização do campo”. Agora, com a chegada da era da extração dos imensos recursos naturais da região (rubis de Montepuez; gás natural do Rovuma; grafite de Balama, etc.) foram de novo forcadas a abandonar as suas aldeias e a serem “reassentadas” em outros regiões. Agora, com a guerra terrorista, novas aldeias comunais…? De novo, a desvinculação involuntária dos camponeses das suas terras?

Chamo para aqui o Prof. Yussuf Adam, ele que dedicou quase uma vida inteira pesquisando sobre estes assuntos, igualmente críticos, para uma compreensão mais ampla das causas de conflitualidade humana em Cabo Delgado.

Oiço, na voz do Prof. Ngunga, um clamor carregado de humanismo. Mas temo que decisões tomadas à flor da pele, em ambiente de grave emergência humanitária, corram o risco de produzir resultados perversos, tornando-se fontes de mais sofrimento humano, de mais fontes de violência estrutural sobre as populações de Cabo Delgado, e não soluções socialmente sustentáveis.

Agora como Presidente da ADIN, creio que tem, o Prof. Armindo Ngunga, espaço e oportunidade para promover debates mais amplos e mais estruturados sobre este ou outros assuntos críticos, convocando para o efeito diferentes saberes e sensibilidades locais e nacionais, sempre na perspectiva da restauração da segurança plena das populações de Cabo Delgado e da salvaguarda da sua dignidade, enraizada na relação com as suas terras.

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