As comunidades das áreas abrangidas pelo projecto de exploração de areias pesadas no Distrito de Angoche, Província de Nampula exigem à empresa chinesa Haiyu Mozambique Mining Co. Lda., e ao governo, o cumprimento escrupuloso de todos os requisitos impostos pela lei, para o exercício das suas actividades, bem como a correção de todos os erros e atropelos à lei, cometidos ao longo de oito anos de actividades ilegais. Tais ilegalidades incluem a inobservância da obrigatoriedade de consultas comunitárias e de justa indemnização em casos de perda de terras ou de benfeitorias dentro do território abrangido pelo projecto. O governo moçambicano foi cúmplice nos atropelos à lei e promete, agora, promover a sua correção.
Estes factos vieram à tona quando o governo promoveu as primeiras consultas comunitárias relativas ao desenvolvimento do projecto de exploração de areias pesadas por aquela empresa, na última semana de Outubro passado. As consultas abrangeram a comunidade de Cerema, nomeadamente os bairros de Murrua, Malacassa, Kiriquitji, Nathangala, Namithanari, Namawe e Naphopwe, naquele distrito costeiro da província de Nampula. Estas consultas ocorrem oito anos após a empresa ter iniciado a exploração daqueles minérios, ao arrepio da lei e com a conivência do governo.
Com efeito, a Haiyu Mozambique Mining Co. Lda iniciou as suas actividades em Angoche em 2011 sem o cumprimento de uma série de obrigações legais, conducentes à obtenção da licença ambiental, incluindo consultas e participação comunitária; estabelecimento de critérios para indemnizações ou compensações por perdas e danos; e possíveis planos de reassentamento, tal como consagrado em uma panóplia de dispositivos legais.
Governo diz que tinha … “fome”
As consultas, conduzidas nas línguas Emakhua e Ekoti (as mais faladas localmente), foram dirigidas pelo Administrador do Distrito, Rodrigo Artur Ussene. Participaram neste exercício, para além de membros do governo distrital, representantes de organizações da sociedade civil e pessoas singulares interessadas.
Na ocasião, o administrador de Angoche reconheceu os erros cometidos pelo governo, nomeadamente por ter descurado a imposição legal de realização de, pelo menos, quatro consultas junto das comunidades afectadas e o seguimento dos procedimentos legais para a atribuição do Direito de Uso e Aproveitamento da Terra (DUAT) à empresa chinesa.
Na sua intervenção Rodrigo Ussene justificou os atropelos então consentidos pelo governo alegando que “nos anos passados estávamos com fome”, o que terá levado o governo a “permitir que a empresa chinesa explorasse os recursos, passando por cima de alguns procedimentos”. Como medida de correção de tais erros, o governo estava ali naquele dia para “consultar as comunidades, para saber se a empresa chinesa pode obter o DUAT ou não, e se pode continuar com o projecto de exploração das areias pesadas ou não”.
Por seu turno o representante da Direcção Distrital de Terra, Ambiente e Desenvolvimento Rural, Alexandre António, informou que à empresa chinesa foi atribuída uma licença de exploração e pretende, agora, obter um DUAT, processo que não pode progredir sem a realização de consultas comunitárias.
Por seu lado, o representante da Haiyu Mozambique Mining Lda, Amilcar Marremula, também se desdobrou em pedidos de “desculpas” às comunidades, recorrendo a metáfora de “um rapaz que conquistou uma menina e a levou consigo sem o consentimento dos pais”, e que agora pretende regularizar essa “união”.
Comunidades frustradas
Ao longo destas sessões, em todos os sete bairros, as populações levantaram as mesmas questões que as apoquentam, relativas a direitos violados e a partilha de receitas derivadas da exploração de recursos situados em seu território.
A primeira questão levantada pelas comunidades foi a percentagem dos 2.75%, das receitas adquiridas pelo Estado, de impostos da actividade mineira, e que, por lei, devem ser canalizados às comunidades locais. A este respeito, referiram as comunidades nunca terem recebido qualquer valor correspondente àquela percentagem, ao longo dos oito anos de actividade daquela empresa.
‟A empresa deve, primeiro, ressarcir às comunidades pelos danos causados ao ambiente pela extração desregrada daqueles recursos; ao mesmo tempo que o Estado deve repor o valor dos impostos sobre a produção que já cobrou à empresa, na percentagem de 2.75% determinada por lei” disse João Alide, residente do Bairro Murrua.
Por seu lado, Zeca Mussa, falando em nome dos jovens locais, corroborou com a demanda de João Alide, dizendo ser dever do governo passar às comunidades beneficiarias o valor correspondente a 2.75% dos impostos já cobrados à empresa chinesa, ao longo dos oito anos de actividade.
“Pedimos que se respeitem as comunidades e que se honre com os compromissos para que o ambiente e o convívio entre a comunidade, empresa e governo seja saudável”, sublinhou Zeca Mussa.
Em resposta a estas e outras reclamações da comunidade, o Administrador de Angoche garantiu que o governo vai canalizar os valores correspondentes à percentagem prescrita pela lei e que o mesmo deve beneficiar disse todas as comunidades dos bairros onde decorre a mineração.
As comunidades reclamam que em oito anos de exploração mineral na região, a empresa chinesa ainda não lhes ofereceu quaisquer benefícios sociais, como infraestruturas de acesso a água, à saúde ou de outra natureza. As mulheres participantes das consultas comunitárias destacaram a falta de um posto de saúde, de meios de transporte e de vias de acesso. postos de saúde e de estradas. Elas disseram que têm dado parto, enquanto percorrem a pé mais a distância de mais de 30 quilómetros que os separa do Hospital Rural de Angoche.
“Estamos muito frustradas com esta empresa, que não nos presta qualquer ajuda. Aqui não temos transporte público porque a estrada é de terra batida e se encontra em péssimas condições de conservação. No hospital as vezes não nos recebem com bebes recém-nascidos, porque as enfermeiras dizem que gostamos de dar parto em casa quando os partos devem ser feitos na unidade sanitária. Se eu pudesse falar com Deus perguntaria a que horas meu bebé vai nascer. Nós e os bebés corremos muitos riscos de vida.”, disse Eli Essiaca.
Assim, as comunidades consultadas pedem a construção de, pelo menos, um posto de saúde num dos bairros que seja equidistante dos outros, como, por exemplo, o bairro de Murrua, que se situa no meio entre a Cidade de Angoche e o Posto Administrativo de Sengage, a 45 quilómetros da cidade.
Em resposta, Amílcar Marremula informou que que está no plano da Haiyu a ampliação do hospital de Sengage e a formação de dois elementos das comunidades na área de enfermagem. Quanto ao pedido de um novo hospital ou posto de saúde, o representante empresarial referiu que tal deve ser coordenado com os planos do próprio governo distrital. Dentro de dias vai chegar uma ambulância que servirá às comunidades para transporte de doentes ao Hospital Rural de Angoche”, prometeu o representante da empresa chinesa.
Amílcar Marremula acrescentou ainda que outras actividades planificadas pela sua empresa incluem a construção de poços de água e instalação de energia eléctrica nos bairros. “Já estamos a trabalhar com a Electricidade de Moçambique e está em curso o trabalho de montagem de postes de condução de energia eléctrica.
Graves danos ambientais
A exploração das arreias pesadas de Angoche iniciada, de forma intensiva desde 2011, é feita ao longo da zona costeira onde predomina o mineral, visível a olho nu. A sua exploração já criou sérios danos ao meio ambiente, que foram objecto de denúncia por parte de diferentes organizações de direitos humanos, incluindo a Amnistia Internacional. Muitos lugares de conservação ambiental foram destruídos, nomeadamente os ecossistemas vegetal e aquático.
Em todos os bairros onde tiveram lugar as primeiras consultas comunitárias, os participantes reclamaram a devastação das matas de onde obtinham meios de subsistência, incluindo plantas medicinais, frutos silvestres e lenha.
“ Quem conheceu o ecossistema de Murrua antes da exploração das arreias pesadas, hoje sentiria muita revolta com a presente situação”, destaca Laurentino Jamal.
Por seu lado, a líder comunitária local, rainha (Curochiwa) – Muelequea Gimo reclama contra a destruição da vegetação afirmando ser dela onde os filhos da comunidade obtêm os seus alimentos. Ela destacou os diferentes fins das plantas silvestres locais, desde a própria alimentação até à medicina. Curochiwa pede a reposição das condições ambientais destruídas e mais respeito pelos direitos das comunidades.
Uma das consequências mais imediatas da exploração de areias pesadas na região é a extinção de lagoas, que eram fontes de água e de alimentos, nomeadamente do peixe macupa, um dos alimentos básicos de centenas de famílias, e fonte de rendimento de muitas outras. Noutros locais ainda a extração de areias pesadas ditou a extinção de poços tradicionais de água onde as comunidades se abasteciam e lavavam roupa.
Algumas vias de acesso para os bairros desaparecem no tempo chuvoso porque as dunas de arreia alagam as ruas e bloqueiam passagens para a estrada principal. Por exemplo, em Kiriquitji, quando chove, as crianças não têm como ir à escola que dista a cinco quilómetros de Murrua, devido à inundação e ao soterramento das vias.
A este respeito, Amílcar Marremula referiu que estão em curso estudos ambientais e de geologia para aferir quais são as consequências de construir valas de drenagem para as águas que obstruem as vias de acesso. Amílcar Marremula disse ainda que a empresa possui um plano de desenvolvimento e outro de responsabilidade social que está a ser implementado neste momento. Porém, a comunidade referiu desconhecer tal plano.
Por seu lado, o líder da comunidade de Murrua, Lopes Cocotela, disse que a empresa chinesa chegou de surpresa e iniciou a exploração das arreias pesadas, sem que tenha havido qualquer aviso. Questionou ao governo sobre a área exacta correspondente à Licença de exploração atribuída a Haiyu Mozambique Mining Lda.
Com recurso a mapas impressos, Amílcar Marremula respondeu que a empresa possui duas licenças, nomeadamente, uma cobrindo a zona de Thopa, e outra, a região de Murrua, da costa ao interior, respectivamente.
Contrariamente ao que a empresa fez, num passado recente, de explorar arreias pesadas que resultaram no soterramento de algumas lagoas, Amílcar explicou que a empresa não irá explorar o mineral na comunidade de Lengonha por ter muitas zonas húmidas e lagoas.
No que respeita ao processo de desassoreação das lagoas para continuarem a produzir peixe para a comunidade bem como restaurar a flora ora destruída, Marremula disse: “estes processos irão ocorrer porque a empresa reconhece ter destruído as zonas húmidas durante a exploração mineira”.
Comunidade desconfiada
Amílcar Marremula disse que a empresa possui um plano de desenvolvimento e outro de responsabilidade social que está a ser implementado neste momento. Disse que estão em curso estudos ambientais e de geologia para aferir quais são as consequências de construir valas de drenagem para as águas que obstruem as vias de acesso.
Contudo, nas suas reações a estes anúncios da empresa, as comunidades consultadas mostraram-se sépticas e desconfiadas, afirmando que, em oito anos de actividade na região, a Haiyu Mozambique Mining Lda. jamais demonstrou qualquer interesse em dialogar com elas. Os níveis de desconfiança das comunidades para com as promessas da empresa são tão altos que não faltaram ocasiões em que algumas pessoas participantes das consultas suspeitaram da fidelidade da tradução das suas reclamações, da língua portuguesa para o Chinês!
Palmira Velasco (Texto) Naita Ussene (Fotos)