Por serem obrigadas a “casar” ainda prematuramente, com homens adultos, com idades variando entre os 11 e 19 anos, elas contraem gravidez ainda adolescentes. Como o corpo não está ainda preparado para suportar o trabalho de parto, elas ficam em serviço de parto caseiro, entre dois a três dias e, no final, dá-se a tragédia: os bebés nascem já mortos e elas contraem uma grave deformação fisiológica, que lhes vai provocar intensas dores e vota-las ao abandono: do marido e da comunidade. Porque elas passam a…”cheirar mal”! Vai levar tempo, até encontrarem um médico, que lhes trate da doença, lhes devolva a dignidade e novas energias para o recomeço da vida!É este o drama da fístula obstétrica, que atinge milhares de adolescentes, na sua maioria por serem obrigadas a casar ainda em tenra idade.
SEKELEKANI foi à província da Zambézia, para ouvir de perto, não só os dramas destas raparigas, algumas delas entretanto tornadas senhoras adultas, mas também suas estórias de coragem e superação, que as transformaram de vítimas a salvadoras de outras raparigas.
São mulheres que sofreram discriminação, rejeição, abandono pelos próprios maridos e estigmatização ao longo de anos, por serem vítimas de fístula obstétrica, mas que, entretanto, voltaram a sorrir e a conviver com seus familiares e amigos, depois de serem submetidas a cirurgias de correcção do dano. Hoje, graças a mãos “mágicas” de médicos obstetras do Hospital Rural de Mocuba, Província da Zambézia, estas mulheres retomaram suas vidas, normalmente.
Estas mulheres carregam consigo uma chaga comum: engravidaram na adolescência e, na hora de dar à luz aos seus bebés, o trabalho de parto foi arrastado ao longo de dias , pelo facto de, primeiro terem tentado fazer partos em casa, assistidas por matronas , e só recorrendo a uma unidade sanitária na hora de desespero e dor. E quando já era tarde, pois , além de grandes danos ao seu corpo frágil, os seus partos resultaram , todos, em nados mortos!
Nas conversas com elas mantidas, elas contam as suas estórias e peripécias, porém destacando que, no final, sobreviveram e voltaram a ganhar motivação e energia, para saírem de casa e irem a busca de outras mulheres, ajudando-as a vencerem a doença e reganharem dignidade, junto das respectivas comunidades.
Beatriz Sebastião casou e engravidou quando era ainda muito jovem. Vivia no Distrito de Lugela, e bem longe do hospital. Além disso, de tão jovem e inexperiente, não frequentou, durante o período da gestação, qualquer unidade sanitária, para se aconselhar.
Quando iniciaram as dores de parto, a Beatriz foi levada para uma matrona, para a assistir. Porém, o serviço do parto viria a arrastar-se por dois dolorosos dias e, quando finalmente este se consumou, o bebé já estava morto!
Passado algum tempo, a Beatriz voltou a engravidar e a história repetiu-se. E tudo ocorreu, de novo, nas mãos de uma matrona. “Foi quando a minha família procurou transporte que me levou ao hospital. Estive em coma durante três dias, pois tinha tido novo nado morto”, conta a Beatriz. É a partir deste segundo parto que a Beatriz vai experimentar um período de uma vida desconfortável, causada pela fístula. “Comecei a sentir muitas dores e não conseguia explicar o que se estava a passar comigo, pois andava constantemente molhada. Não sentia a urina e os excrementos a saírem”, afirma ela. A família levou-a ao curandeiro para se tratar do que achavam ser mero italmuari (corrimento, na língua local, de Lugela).
Fístula é uma ruptura no canal vaginal que causa incontingência e leva à exclusão social de milhares de mulheres. Suas principais causas são partos prolongados e obstruídos, especialmente onde o acesso a cuidados obstétricos é restrito. Sem acesso a cesariana de emergência as complicações do parto podem ser fatais. No entanto se a mulher sobrevive ao parto, é comum que ocorra ferimentos permanentes no canal de parto. Devido à abertura anormal criada para a bexiga ou para o recto, a mulher com fístula sofre de constante incontinência urinária e fecal. Os fluídos causam um odor desagradável e podem causar ulcerações ou queimaduras nas pernas da mulher. A fístula tem tratamento. Nalguns casos, um reparo cirúrgico simples pode durar apenas 45 minutos, mas muitas das ocorrências são mais complexas e demandam diversos procedimentos realizados por cirurgiões altamente qualificados.
Impacto da Rádio Comunitária de Mocuba
A Beatriz iria passar seis longos anos de martírio, até quando um tio lhe sugeriu um caminho: este, depois de ouvir um programa radiofónico, transmitido pela Rádio Comunitária de Mocuba, procurou mais detalhes junto desta, donde recebeu uma recomendação para entrar em contacto com uma organização cívica local, denominada Associação Moçambicana de Direitos Humanos e Fístula (AMODEHF).
É com a ajuda da AMODEHF que a Beatriz veio a ser conduzida ao Hospital Rural de Mocuba, aonde é operada, em 2014 , reiniciando, a partir daí, uma nova vida. Diz que sentiu a sua dignidade de volta, depois da operação.
Ao contrário da prática comum, a Beatriz diz que “graças a Deus o meu marido nunca me abandonou, desde a altura que perdi o primeiro bebé, até hoje: ele está do meu lado, apesar dos médicos terem dito que eu nunca mais voltarei a ter filhos”.
Já curada, a Beatriz é actualmente uma activista dos direitos humanos, em apoio a outras mulheres sofrendo de fístula obstétrica e, nessa condição, ela já identificou e encaminhou ao hospital, oito mulheres sofrendo desta doença, para tratamento.
A AMODEHF é uma associação sem fins lucrativos que sensibiliza as comunidades locais sobre os riscos e malefícios dos casamentos prematuros e da violência doméstica. Homens. Ela foi criada em 2009 por iniciativa de Albertina Luís, na altura, locutora da Rádio Comunitária Mocuba. Tudo começa quando, em 2006, Albertina teve uma tia com fístula obstétrica. Curiosa, contactou o hospital para exames médicos de sua tia e pedir explicação sobre a doença. Depois de ter toda a informação e de saber que a fístula tem cura, Albertina decidiu passar essa mesma informação ao público, através de um programa radiofónico. Ela também reunia com líderes comunitários e religiosos para explicar e pedir ajuda na identificação de mulheres com fístula. O programa radiofónico nico da Albertina tornou-se tão popular que no final de cada emissão ela recebia inúmeras chamadas telefónicas de pessoas pedindo a sua ajuda para o tratamento de fístula! Neste momento a associação conta com 36 voluntários, dos quais 26 mulheres e 10 homens. Como resultado desta actividade, ela, já em associação com outros voluntários, decidiram criar a Associação Nicoiane ( Ajudemo-nos uns aos outros). Mas tarde a Nicoiane passou a designar-se por AMODEHEF. Neste momento a AMODEHF tem o apoio do NAFEZA – Núcleo das Associações Femininas da Zambézia que faz as capacitações e conta ainda com o apoio do governo através da Direcção Distrital da Mulher, Género, Criança e Acção Social na aquisição de produtos alimentares para as sobreviventes da fístula iniciarem seus projectos de geração de fundos. Segundo Albertina, o hospital apenas recebe as pacientes e faz a cirurgia e não tem responsabilidades sobre as pacientes no período pré e pós-cirurgia. “Precisamos de uma casa e espaço onde as pacientes se sintam à vontade. O que acontece, muitas vezes é que elas sofrem discriminação e estigmatização. É comum as pessoas cuspirem em frente das pacientes com fístula o que faz com elas sintam-se pessoas sem esperanças”, concluiu Albertina Luís.
De igual modo, Marília Mesa, também do Distrito de Lugela, casou prematuramente. Aos 19 anos engravidou e, no momento do parto, os familiares contrataram uma matrona. O parto foi arrastado por três dias. Já sem forças, ela foi transportada de bicicleta ao posto de saúde de Lugela, donde recebeu ordem de transferência para o Hospital Rural de Mocuba, aonde foi ter um nado morto. Depois de regressar a Lugela, começou a sentir dores muito fortes. As dores eram resultado da fístula obstétrica. Andou de curandeiro em curandeiro para, em vão, tentar resolver o problema.Entretanto, o marido a abandonou.
“Lembro-me que o último curandeiro para onde me levaram preparou-me papas, juntou um medicamento e despejou na areia, onde tinha marca de pilão. Ordenou-me que comesse a papa directamente do chão, sem usar colher”, conta a Marília, acrescentando: “Fiquei doente de tal forma que me caiu todo o cabelo. Fui discriminada porque não tinha controlo da urina e das fezes. Passei por momentos que nem gosto de me lembrar”.
Entretanto, quando uma prima que trabalhava em Quelimane, a capital da Província da Zambézia, a foi visitar em Lugela, recomendou aos pais que a levassem ao medido, em Mocuba. Aqui chegada, a Marília é levada de emergência à sala de operações, aonde teve a cirurgia de correcção.
Três dias após a cirurgia, a Marília já podia caminhar e retornar a uma vida normal. Cumpriu todas as consultas trimestrais de controle e, até ficar bem. Recebeu informação do médico que não seria mais possível voltar a engravidar. Porém, após recuperar da doença, a Marília voltou a casar-se e…concebeu: o filho tem agora 18 anos!
“Hoje sou uma mulher feliz, vivo com meu marido e meu filho. Trabalho como activista na AMODEHF. Faço o programa radiofónico, na Rádio Comunitária Mocuba, em língua manhaua sobre combate à violência doméstica baseada no género, onde também abordo o tema de casamentos prematuros e da fístula obstétrica. Faço-o como um gesto de gratidão para com aqueles que me ajudaram também”, diz a Marília.
Nas sessões de educação cívica comunitária, nos bairros e nas comunidades, a Marília explica a outras mulheres com fístula que estar doente não é sinónimo de fim da vida porque a doença tem cura. Ela explica ainda que ela é exemplo de que a vida continua e há muito por fazer ainda.
Agora a estória de Lídia Alberto. Ela, órfã de pais, engravidou aos 12 anos, como resultado do primeiro “casamento” que lhe foi imposto. Ela vivia bem longe da cidade de Mocuba. A tentativa de dar à luz prolongou-se por três dias, assistida por uma parteira tradicional. Com o apoio da irmã mais velha, a Lídia acabou sendo levada ao hospital, aonde foi operada e lhe foi extraído um bebé já sem vida. Então marido abandonou-a imediatamente!
Assim que recuperou, a Lídia foi de novo obrigada a casar pela segunda vez, e engravidou de novo. E a sua triste repetiu-se. Ela não conseguiu dar à luz ao bebé porque as assistentes, mulheres mais velhas, não sabiam que tinha a bacia estreita, não apta a ter um parto normal. Nesta segunda tentativa de parto, a Lídia teve fístula. Foi evacuada para o hospital onde foi assistida, mas já era tarde: perdeu o bebé, que saiu já sem vida.
Lídia teve fístula aos 15 anos. Viveu dois anos discriminada e chamada por vários nomes pejorativos, na sua comunidade. Lídia lembra-se que na altura, a falecida mãe levou-a para fazer um tratamento tradicional, mas a curandeira foi honesta e disse que não era capaz de curá-la. Porque para aquela doença só devia dirigir-se ao hospital. Uma vez mais, a irmã mais velha escutou um programa radiofónico que falava sobre a fístula. Depois de obter toda a informação sobre a possibilidade de cura, contactou o hospital.
Nos finais do ano 2017 Lídia foi levada ao hospital para as primeiras consultas e análises. Em 2018 foi operada e recuperou o seu estado fisiológico natural.
“Passados três meses fiquei bem e comecei a namorar com o meu actual marido. Engravidei de novo e tenho um menino de 10 meses. Estou feliz e sou activista da AMODEHF. Falo sobre as consequências dos casamentos prematuros que são uma forma de violência baseada no género. Falo também da fístula. Digo às mulheres que sou o exemplo porque sobrevivi à fístula”, disse Lídia.
Ela explica que há muitas jovens e mulheres com fístula, mas têm vergonha de falar sobre a doença. Outras ainda acreditam que a fístula é resultado de feitiço e só pode ter cura por via de métodos tradicionais.
A Lídia recebeu apoio no valor de 30.000 meticais do governo, através do Ministério da Mulher, Género, Criança e Acção Social. Com o valor comprou produtos de primeira necessidade e abriu uma banca no mercado local da sua comunidade.
“Como há muitas bancas que vendem os mesmos produtos, eu decidi mudar de estratégia. Vendo peixe seco porque tem muita clientela para além de fazer bolinhos para venda”.
Ela conta que sempre soube que uma mulher grávida deve ir a unidade sanitária. No terceiro mês de gravidez ela foi fazer consulta pré-natal e recebeu uma ficha. Disse também que ia regularmente às consultas no hospital e participava nas palestras, mas como na sua comunidade é normal as mulheres darem à luz em casa quando chegou a vez dela, não se preocupou em ir ao hospital.
Fístula é preocupante na Zambézia
Nunes Calisto João Nivoro, um dos membros fundadores da AMODEHF diz que a dimensão do problema da fístula obstétrica é maior em relação ao que tem sido reportado pelos órgãos de comunicação social. Acrescenta que há casos de fístula em crianças a partir dos 11 anos de idade. Os casamentos e a gravidez precoces são a maior razão do número elevado de pacientes vitimas desta doença.
Até finais de 2018, a AMODEHF tinha registado 57 mulheres operadas com sucesso à fístula. Este ano, 2019, só nos Distritos de Lugela e Mocuba já foram tratadas 38 mulheres.
“Estamos a trabalhar nos Distritos de Namarroi onde identificamos 16 mulheres, 13 no Ile ; 18 em Molivala ; outras 18 em Maganja da Costa , 18 em Pebane ; e 9 em Muambanama, esclarece Nunes Nivoro.
Entretanto em Moçambique as zonas de elevadas taxas de fístulas são as províncias de Niassa, Tete, Zambézia, Nampula e Inhambane, devido a baixa cobertura assistencial ao parto na zonas rurais. Mas também devido a factores de natureza cultural, como por exemplo os casamentos prematuros com partos em idade precoce.
Não foi possível obter dados estatísticos de cirurgias de fístula já realizadas no Hospital Rural de Mocuba por causa da burocracia exigida para obter informação. A equipa do SEKELEKANI, devidamente identificada e credenciada apresentou-se e pediu informação para uma reportagem sobre a fístula no Distrito de Mocuba. A Direcção do Hospital Rural de Mocuba disse que carece de autorização da DPS-Direcção Provincial de Saúde da Zambézia. Esta por sua vez, remeteu o SEKELEKANI a uma autorização a ser solicitada em Maputo! A DPS sugeriu que SEKELEKANI assinasse um Memorando de Entendimento com o Ministério da Saúde, pois sem esse documento a equipa estava interdita de fazer reportagens inter-hospitalar. Uma clara intenção de não disponibilizar a informação.