O Fundo Soberano de Moçambique vai ser criado ao abrigo do Lei de Petróleos, em cujo artigo 37 ela determina que “cabe à Assembleia da República definir um mecanismo de gestão sustentável e transparente das receitas provenientes da exploração dos recursos petrolíferos do país, tendo em conta a satisfação das necessidades presentes e as das gerações vindouras”.
De acordo com os princípios universalmente reconhecidos, nomeadamente os chamados Princípios de Santiago, os Fundos Soberanos sustentam-se no princípio da soberania do povo sobre os recursos naturais do respectivo país. Entretanto, a Constituição da República de Moçambique (arts.98 e 109), a Lei de Terras (art.3) e a Lei dos Petróleo (art.18) , todos declaram que a terra e os recursos naturais do país são propriedade do Estado.
Entretanto, segundo argumentam alguns juristas, dos três elementos que constituem o Estado – o povo, o território e o poder político – apenas o povo é que é tangível, e portanto susceptivel de ser titular de direitos, e neste caso, da propriedade sobre a terra e dos recursos naturais.
Esta foi uma das questões apresentadas aos deputados da Assembleia da República, reunidos recentemente em retiro organizado pelo Movimento Cívico sobre o Fundo Soberano, no quadro da preparação do órgão, para elaboração da legislação que vai regular o futuro Fundo Soberano.
Nesse sentido vai o raciocínio do Arsénio Lampião, jurista com largos conhecimentos sobre o enquadramento jurídico de Fundos Soberanos:
De resto, parece ser nesse sentido que aponta a própria Constituição da República, ao consagrar, que “a soberania reside no povo”, que a exerce “segundo as formas fixadas na Constituição” (cfr. ns. 1 e 2 do artigo 2).
Assim, uma revisão da Constituição, declarando expressamente que a terra é propriedade do povo, que a gere segundo princípios consagrados na Constituição, não só constituiria uma base expressa de acolhimento do Fundo Soberano, como ainda iria dissipar equívocos de alguma interpretação da actual redacção, em que, amiúde, “propriedade do Estado” é confundida com “propriedade do governo”.
Adicionalmente, a criação de um Fundo Soberano, nos termos da proposta do Banco de Moçambique, significa a consignação de parte das receitas do Estado, para este mecanismo de gestão financeira, portanto “desvio” de receitas do orçamento geral do Estado. Esta medida estaria, por sua vez, a contrariar a lei que cria o sistema de administração financeira do Estado (SISTAF), a Lei n.º 9/2002 de 12 de Fevereiro, cujo artigo 13 proíbe que o “produto de quaisquer receitas seja afectado à cobertura de determinadas despesas específicas “
Adicionalmente, o Fundo Soberano, que seria sustentado por alocações financeiras de longo prazo, com o sentido de “fundo de poupança intergeracional” nos termos da proposta do Banco de Moçambique, entra também em conflito com a Constituição da Republica, a qual consagra o princípio da anualidade do orçamento (cfr. nº1 do artigo 130).
Estes elementos e outros, parecem constituir fundamentos para o argumento de que o estabelecimento de um Fundo Soberano implicará uma revisão constitucional, cujo objectivo central deverá ser a consagração do próprio Fundo Soberano na Lei Fundamental da Nação, garantindo que este seja um instrumento de promoção de estrito rigor e disciplina na utilização das receitas de exploração de recursos naturais, e protegido de quaisquer pressões políticas.
Alguma comparação de direitos
Em diferentes países ou estados do mundo, o fundo soberano é consagrado na Constituição da República, com diferentes redações, mas conferindo ao mecanismo maior dignidade jurídico-legal, e sobretudo, defesas mais robustas, nomeadamente livrando-o de oscilações de interesses políticos, geralmente associados a agendas do governo do dia. Vejam-se os casos de Timor-Leste e do Ghana.
A Constituição de Timor-Leste, de 2002, consagra no seu texto (artigo 139 ) este mecanismo, nos seguintes termos:
- “Os recursos do solo, do subsolo, das águas territoriais, da plataforma continental e da zona económica exclusiva, que são vitais para a economia, são propriedade do Estado e devem ser utilizados de uma forma justa e igualitária, de acordo com o interesse nacional.
- “As condições de aproveitamento dos recursos naturais referidas no número anterior devem servir para a constituição de reservas financeiras obrigatórias, nos termos da lei.”
Por seu lado, quando o Ghana criou o seu Fundo Soberano em 2010, a respectiva lei evocou a Constituição da República, de 1992 em cujo artigo 36 estabelece o seguinte:
“1. O Estado deve tomar todas as medidas necessárias para garantir que a economia nacional seja administrada de maneira a maximizar a taxa de desenvolvimento econômico e garantir o máximo de bem-estar, liberdade e felicidade de cada pessoa no Gana e fornecer meios de subsistência adequados e emprego adequado e assistência pública aos necessitados”.
2. “O Estado deve, em particular, tomar todas as medidas necessárias para estabelecer uma economia sólida e saudável, cujos princípios básicos devem incluir…” (d) “empreender o desenvolvimento equilibrado de todas as regiões e de cada parte de cada região de Gana, e, em particular, melhorar as condições de vida nas áreas rurais e, em geral, corrigir qualquer desequilíbrio no desenvolvimento entre as áreas rurais e urbanas ”
Parece particularmente incisiva a Constituição do Ghana, quando acautela, desde logo, os objectivos do desenvolvimento equilibrado de todas as regiões do pais e de cada região e, em particular, a melhoria das condições de vida nas áreas rurais e a correção de assimetrias de desenvolvimento entre as áreas rurais e urbanas: um comando constitucional a orientar expressamente os objectivos programáticos do Fundo Soberano.
A par das considerações sobre a consagração de mecanismos robustos de transparência e de prestação de contas, a perspectiva de uma revisão constitucional, ainda que cirúrgica, para acomodar e acautelar a robustez jurídico-legal do mecanismo, sugerem um processo que deve ser conduzido de forma cautelosa, livre de quaisquer agendas políticas de impacto imediato.