Passam hoje, precisamente, 30 anos de um dos mais hediondos massacres do mundo. Não apenas pelo elevado número de vítimas (mais de 350 civis), mas sobretudo pelo seu carácter brutal e sórdido, perpetrado por seres estranhos e possessos! Moçambique e os moçambicanos despidos da sua dignidade. A humanidade insultada, cabisbaixa.
Menos de um ano antes tinha morrido Samora Machel e, com ele, mais de trinta pessoas, incluindo ministros, assessores e outros oficiais do Estado. Mais do que a trágica morte de um Chefe de Estado, era o culminar de uma prolongada e enfurecida ameaça à manutenção de Moçambique enquanto Estado soberano. A autoestima dos moçambicanos no seu nível mais baixo…desde a humilhação de Coolela!
Quero, no presente texto, recordar alguns episódios em torno do 18 de Julho de 1987, dividindo o texto em três partes, a saber: o impacto da notícia do massacre em Lisboa; a reação de Afonso Dhlakama numa entrevista que me concedeu em Setembro de 1993 e a relação do povo de Homoine com a memória do massacre.
Parte I: as perguntas que não pude responder
A notícia do massacre de Homoine começa a circular na imprensa portuguesa na noite do dia 19 de Julho. Na manhã do dia 21 ela vai fazer manchete em todos os principais jornais. A imagem de Moçambique nos seus períodos mais baixos de sempre. “Os moçambicanos estão chacinando-se entre si”, assim se pode resumir o tom geral das notícias. Entre aqueles jornais associados à ressaca colonial e ressabiados com a independência de Moçambique, há, entrelinhas, um quê de escárnio: lembro-me, vagamente, de um título que dizia, mais ou menos, isto: “da fome à carnificina- eis os frutos da dita independência de Moçambique”.
Enquanto correspondente da AIM na capital portuguesa, recebo de todos os cantos do mundo, este tipo de perguntas: “ afinal o que se passa convosco, moçambicanos?!” “ Que anátemas vos foram atirados pelos deuses?” “Que males tão graves e insanáveis ter-se-ão infringido, uns aos outros, a ponto de se massacrarem tão cruelmente?” Destas perguntas entendia-se que para o mundo, já pouco importava querer encontrar “culpados” e “inocentes” : simplesmente, os moçambicanos estavam a matar-se uns aos outros, sem dó nem piedade!
Pelo tom com que as mesmas perguntas me chegavam, por telefone ou via telex , parecia que quem as fazia sabia que Homoine era a minha terra natal! O meu eternamente empobrecido distrito de Homoine!
Na sua maioria, estas mensagens chegam sobretudo de ONGs de países nórdicos, com longa experiência de trabalho em Moçambique e que apoiam tecnicamente a própria AIM. E eu não sei responder. Mas…haveria quem soubesse? Sem facilidade de comunicação, não sei, sequer, de forma imediata, se alguém da minha própria família terá morrido nesta carnificina. Nos dias seguintes, à noite, vou molhar a almofada de lágrimas, chorando, na solidão. Do meu homólogo da Agência de Noticias de Angola (ANGOP), o Nazaré Van-Dunen, vou receber a mensagem que mais me vai comover: “Meu irmão, estamos juntos!” Jamais me esquecerei: “Meu irmão, estamos juntos”!
Os relatos que vou receber, através de sucessivos despachos da AIM e de outras agências noticiosas (estrangeiras) são aterradores: para além da imagem de seres desalmados, dizimando furiosamente pessoas inocentes e indefesas, na sua maioria acamadas no Hospital Distrital da Vila-Sede de Homoine, são também transmitidas dúvidas sobre a identidade das forças perpetradoras. Depois de uma torrente de relatos atribuindo claramente a autoria do massacre a forças da Renamo, vão emergir outros relatos atribuindo, igualmente, alguma autoria a distintas unidades das forças governamentais, aparentemente por falta de coordenação entre si. Reponho excertos de depoimentos de alguns sobreviventes:
Mark von Koevering, um agrónomo Holandês que sobrevive ao massacre, escondido num hotel, diz o seguinte à AIM: “do princípio pensei que eles (os guerrilheiros da Renamo) fossem tropas governamentais de Homoine porque tinham uniformes e estavam muito bem equipados. Eles estavam muitíssimo bem organizados ( em Inglês: “ because they had uniforms and were very well equipped. They were very well organized”). Esta descrição parece corroborar relatos oficiais, segundo os quais os aliados da Renamo estariam a reabastecer a guerrilha com novos equipamentos, logo a seguir à tragédia de Mbuzini.
Por seu lado, uma reportagem da histórica Revista Tempo diz o seguinte:
” Sem pretender discutir questões táctico-militares, vamos salientar a falta de coordenação entre as tropas do governo estacionadas no distrito e os apoios que vieram de Maxixe em resposta à presença da Renamo no dia do ataque. Na verdade, e de acordo com o nosso trabalho de campo, o grau de dificuldades do exército governamental reflectiu-se na actuação descoordenada das suas tropas na resposta à presença da Renamo na vila sede de Homoíne, o que parece ter agravado o número de vítimas civis, sobretudo na zona das trincheiras localizadas à entrada da vila sede de Homoíne”. (Tempo, N°395, 1987:10)
Questionado sobre o elevado número de mortes, Américo Casimiro, na altura Secretário Distrital da Frelimo, corrobora esta avaliação da revista “Tempo”, dizendo:
“…as tropas da Renamo mataram muito… mas também houve alguns excessos nos apoios militares vindos de Maxixe e das unidades dos Antigos Combatentes estacionadas na localidade de Chindjinguir, a 7 km da vila sede… a população escondida nos abrigos, ao aperceber-se do barulho dos carros militares saiu à busca de socorro; só que as tropas abriram fogo indiscriminadamente, pois confundiu-as com os bandidos uma vez que estes também não estavam uniformizados. Para além disso, os Antigos Combatentes estacionados em Chindjnguir lançavam anilharia pesada para a vila sede do distrito…”
II: Reações de Afonso Dhlakama
Três anos depois, em 1992, vai a ser assinado o Acordo Geral de Paz, um extenso documento composto de sete protocolos, negociados ao longo, precisamente, de 27 meses, no Bairro típico Romano de Trastèvere, não longe do Vaticano. É o primeiro grande entendimento entre os moçambicanos, desavindos desde a chamada “Crise de 69”, em que, dentro do movimento de liberação, os nacionalistas dividiram-se em “linha correcta” e “linha reacionária”, na sequência do que, a “linha correcta”, vencedora, se vai apresentar como “único e legítimo representante do povo moçambicano”
Porém, assinado o AGP, Afonso Dhlakama ainda se vai manter na mítica serra da Gorongoza, por mais um ano: em Maputo, a sua equipa de avanço, chefiada pela dupla de Raul Domingos e Vicente Ululu, vai alegar falta de “casa condigna” para o seu líder. Contudo, uma a uma, eles vão reter as casas que o governo lhes vai sugerindo e que eles, em público, fingem que recusam! Muitas destas casas, antigas residências luxuosas de conselheiros civis e militares do Bloco Socialista, então em “debandada”, se acham integral e ricamente mobiladas! O Eng. João Mário Salomão, Ministro da Construção e Águas, com o consciente beneplácito de Joaquim Chissano, vai fingir não perceber o “jogo”e deixa os antigos rebeldes acumularem, também, residências luxuosas em Maputo.
Afonso Dhlakama vai, finalmente, chegar a Maputo em Setembro de 1993, e instala-se inicialmente na residencial Kaya Kwanga, enquanto a União Europeia lhe capricha a residência com vista para o mar. No “Kaya Kwanga” Dhlakama anda rodeado de muitos apaniguados, incluindo uma legião de oportunistas, alguns antes baseados em Lisboa, aonde os conheci e com quem convivi ao longo de anos… Fazendo uso das minhas relações de muita cordialidade com Raul Domingos, cultivadas nas conversas de Sant’Egido, consigo uma entrevista, em exclusivo para a TVM, com Afonso Dhlakama, a qual vai ocorrer, exactamente na sala baptizada com o nome “Gorongoza”.
É a primeira grande entrevista que Afonso Dhlakama vai conceder a um órgão de informação oficial, estatal, e em exclusivo. Ai traço uma estratégia: começar por uma conversa biográfica, relaxante.
“Senhor Presidente, boas-vindas a Maputo!”
“Muito obrigado!”
“Há quanto tempo não vinha a Maputo….”, “Onde é que nasceu….”- e assim vamos percorrer uma primeira parte da entrevista neste clima: anemo e amigável. E, ao certificar-me de que ele estava suficientemente relaxado, levo-o então para questões mais de fundo: sobre a guerra, os seus aliados rodesianos e sul-africanos e…os massacres!
As suas alianças com o diabo? Ele diz que sim, que é verdade: confirma que comeu muito presunto, mas nem por deve ser considerado amigo do porco! Até porque após o Acordo de Nkomati, os porcos “atiraram os meus comandantes de paraquedas, a partir de Phalabora, para adentro de Moçambique, aonde corriam o risco de serem comidos por leões. Incluindo o próprio Raul Domingos, que era Chefe do Estado-maior general das nossas forças…”
“Mas, senhor Presidente: e os massacres? Era mesmo inevitável queimar pessoas vivas, dentro de machimbombos?!”
“Senhor jornalista! Os massacres não foram com certeza da RENAMO. Nos queríamos as populações para nos proteger, nos dar comida. Não podíamos matar. Isso foi obra das forças da FRELIMO…para atirar as culpas na RENAMO, para o povo se revoltar contra nós”
“Senhor Presidente, desculpa: aquele massacre de Homoine….matar doentes nas camas do Hospital?!”
“Senhor jornalista, esse massacre…eu estou disposto para se fazer um inquérito internacional….Para a população falar…”
“O senhor está disposto a colaborar num inquérito internacional sobre o massacre de Homoine e outros?
“Eu estou disposto sim…para se saber quem andou a matar as populações…”
No fim de uma longa e extenuante entrevista, eu lhe agradeço e ele reage, estendendo-me a mão, gesto que me apanha de surpresa…
Como profissional, senti-me realizado; mas, ao mesmo tempo, algo atordoado, enquanto pessoa. Não estava, certamente, à espera que Afonso Dhlakama falasse da hipótese de um inquérito internacional, a respeito de tantos massacres de que a guerra se tinha alimentado, sobretudo nas províncias de Inhambane, Gaza e Zambézia! Senti, por instantes, algum escurecer em torno de mim: Dhlakama aparenta segurança na sua defesa: são assim os políticos! E aí pergunto-me se podia ou não divulgar a entrevista, tal como ela tinha decorrido. E decido publicá-la em duas partes distintas: a parte autobiográfica e a parte mais substantiva.
Mas não estou seguro sobre as possíveis reações, no dia seguinte, quer da Renamo, quer do governo. Receio, inclusivamente, perder o meu cargo, de Director de Informação da TVM!
A primeira reação há-de ser através de um telefonema de Leite de Vasconcelos, um dos mais respeitados vultos do jornalismo moçambicano e meu antigo Director Geral na Radio Moçambique. Diz-me ele:
“Vi a tua entrevista ontem à noite. Foi importante. Só não percebi por que insististe em tratar esse ….senhor por… “Senhor Presidente”. Que eu saiba, Joaquim Chissano é o único Presidente ….” Eu respondi: “Bem…é a melhor estratégia que encontrei para criar um clima favorável …” Depois de um breve silêncio ao telefone, Leite Vasconcelos disse: “…deves ter razão”. Respirei de alívio.
Pouco depois, vieram as reações da Renamo e do Governo. Quando a minha secretária diz que está na linha a Vice-Ministra dos Negócios Estrangeiros, Sra. Salomé Moiane, o meu coração vai bater fortemente, e penso: “ já estou exonerado!” Mas do outro lado da linha ouço: “Bom dia camarada Vieira. Vimos a sua entrevista ontem com o Senhor Afonso Dhlakama. Quero endereçar-lhe as nossas felicitações! Fez um trabalho de muita qualidade e muita coragem. Parabéns e continua assim”. Desligo o telefone e respiro fundo, incrédulo!
Pouco depois vem a reação da Renamo, na pessoa de Raul Domingos: “Mário, vimos a entrevista ontem. Juntamo-nos para vê-la com o Presidente Djakama (Raul Domingos pronuncia assim mesmo: Djakama). Ficamos satisfeitos. Se vocês continuarem assim na imprensa, então podemos falar de democracia em Moçambique… “
No fim do dia, já na Sede do Sindicato Nacional de Jornalistas, oiço, estimulado, comentários elogiosos de meus colegas, excepto do Atanásio Dimas, Chede de Redação do “Noticias”, que diz, de forma insistente: “parecias ter medo do Dhlakama, pa! Passaste toda a entrevista a trata-lo por “Senhor Presidente, Senhor Presidente!”
III: O massacre e a memória do povo de Homoine
Quando, em 1998, é-me confiado o cargo de Coordenador Nacional do Projecto de Desenvolvimento dos Media da UNESCO, com uma componente para o estabelecimento de Rádios Comunitárias pelo país fora, uma ideia me vem imediatamente à cabeça: sugerir que uma de tais rádios seja instalada, exactamente, na Vila-Sede do Distrito de Homoine!
Contra a proposta, os doadores nórdicos vão colocar a questão da sustentabilidade de uma tal infraestrutura, num distrito pobre e desprovido de um sector comercial capaz de garantir algum patrocínio. Vou colocar como argumento superior a relevância de uma rádio local, no esforço de ajudar o povo a recuperar parte da sua autoestima, tão profundamente atingida pelo massacre de 18 de Julho de 1987: este argumento é prontamente considerado e eu vou rejubilar!
Inicia-se então o processo do estabelecimento da rádio. Do nada. Absolutamente nada! Vamos mobilizar jovens, sobretudo entre professores do ensino secundário e do Centro de Formação de Professores e vendedores do mercado informal, incluindo mulheres. Vamos ainda procurar o apoio das forças religiosas locais, que encontramos, forte e decisivo, junto dos padres Buque (Igreja Anglicana) e Marini (Igreja Católica). Entre os jovens professores, sempre vou recordar-me do entusiasmo de Pedro Francisco e de Julio Jomboze, este último já em 1999 com computador e acesso à Internet naquela pacata vila!
O movimento de mobilização popular vai culminar com a constituição de uma associação, com personalidade jurídica, a fim de assumir a propriedade da rádio. Ao longo das inúmeras reuniões de mobilização social e de preparação técnica da comunidade, vamos aludindo, “en passant”, que a radio vai ajudar a reabilitação moral do povo, devido ao “passado recente, traumatizante”. Porém, para a nossa perplexidade, tais referências não parecem produzir qualquer eco junto do povo. O povo não faz quaisquer comentários, relativamente ao massacre de 1987! Todos mantêm-se, estranhamente, silenciosos, sempre que tentámos abordar o assunto. No culminar do processo para a constituição da Associação, vamos propor à comunidade o nome “Radio 18 de Julho”. Há uma reação unânime de absoluta e liminar rejeição pela comunidade!
Baptista Francisco, proprietário de uma pequena loja no Mercado local, e muito activo no nosso projecto, levanta-se e diz: “ Aqui nós não queremos esse nome, porque não queremos passar a vida a recordar o que nos aconteceu aqui. Eu sou um dos sobreviventes …”. E desata em soluços, contagiando de imediato o ambiente.
Os padres Buque e Marini dizem-me, um atrás do outro, ainda que com palavras diferentes, o seguinte: “ Tú és filho desta terra; sabemos qual é a tua intenção: ajudar o povo a recuperar desse trauma; mas devemos entender a forma que o povo escolheu para gerir a sua dor. Não querem que se fale com insistência desse assunto. Ainda lhes causa muito choque”.
Assim, por decisão da comunidade, a associação vai simplesmente ficar com o nome de Associação da Radio Comunitária de Homoine (ARCO), do que resultou a Rádio ARCO de Homoine.
A Radio ARCO vai ser inaugurada em Maio de 2001, pelo Dr. Aires Bonifácio Ali, então Governador da Província de Inhambane. Passam já, portanto, 16 anos. Estou, por isso e naturalmente, satisfeito que o povo de Homoine a esteja a manter viva, no meio de tantas vicissitudes.
Para o projecto o Governo Distrital vai dar uma contribuição em espécie, disponibilizando um velho edifício colonial, uma casa redonda, que vai ser reabilitada para acomodar os estúdios de produção e de emissão, tudo equipamento digital de primeira linha. Anos depois, a UNESCO vai regressar a Homoine, aonde à radio vai adicionar a componente da Internet, subindo a rádio para a categoria de Centro Comunitário Multimédia!
Do ponto de vista individual, através desta pequena infraestrutura, porém de grande utilidade social, tentei limpar as minhas próprias lágrimas, aquelas que verti sobre a minha almofada, chorando, sozinho, nas longínquas terras de Lisboa.
Mas espero, sobretudo, que um dia fique definitivamente explicado por que forças tão diabólicas e possessas perpetraram tão cruel chacina sobre o pacato e pacifico povo de Homoine, no dia 18 de Julho de 1987. Porque precisamos de esconjurar os nossos demónios; precisamos de fazer a nossa catarse, em vez de recalcar o passado, pois ele sempre nos irá perseguir, como uma sombra projectando escuridão e medo, em frente do nosso caminho, para onde quer que queiramos ir.
Que Deus nos perdoe e abençoe Moçambique!