Um grupo de 20 jornalistas provenientes de diferentes órgãos de comunicação social das regiões Norte e Centro do país participaram recentemente num seminário de refrescamento sobre jornalismo em contexto de crise humanitária, com particular foco sobre violência baseada no género. O seminário, promovido pelo SEKELEKANI, decorreu de um a três de Junho corrente na cidade da Beira, envolvendo jornalistas baseados nas províncias de Sofala, Tete, Zambézia e |Cabo Delgado.
Tendo como principal finalidade consolidar os conhecimentos dos jornalistas sobre a relevância do seu trabalho na cobertura de assuntos associados a crises humanitárias, o seminário foi sobretudo uma oportunidade de troca de experiências entre os participantes em torno desta temática, cada vez mais presente nas suas agendas diárias.
Numa das sessões do seminário, abordando os conceitos de comunicação humanitária, o |jornalista Tomás Vieira Mário, Director Executivo do SEKELEKANI, chamou a atenção dos jornalistas sobre a forma de abordagem da condição da mulher em situações de emergência humanitária, onde a sua tradicional vulnerabilidade pode ser agravada, colocando os seus direitos humanos em risco ainda maior.
A violência baseada no género em contextos de crise humanitária agrava o sofrimento da mulher
Em tais contextos, princípios gerais de ética jornalística devem ser observados ainda com maior rigor, incluindo a privacidade; a proteção da dignidade da mulher contra a violação dos seus direitos, incluindo o assédio sexual como condição para obter alimentos para si e os filhos, sendo importante a proteção da sua identidade para prevenir possíveis retaliações quando ela denuncie tais actos. “Estas condutas podem ser protagonizadas, quer por agentes de autoridades comunitárias ou governamentais, quer ainda por agentes de agências humanitárias ou de organizações não-governamentais, envolvidos em programas de ajuda humanitária” , sublinhou o orador.
Por seu lado, a jornalista Palmira Velasco, que abordou de forma exaustiva os conceitos de género e de violência baseada no género, destacou que algumas práticas violadoras dos direitos humanos das mulheres são mascaradas como “tradições” intocáveis, podendo, inclusivamente, influenciar o próprio trabalho do jornalista.
No contexto de grandes deslocações de comunidades, devido a calamidades naturais ou conflitos violentos, a vulnerabilidade da mulher é ainda maior, uma vez que recai sobre ela o cuidado das crianças, o que pode levar ao agravamento da violência contra ela, frisou.
Numa outra ocasião, o jornalista Jeremias Langa, antigo Administrador de Conteúdos do Grupo SOICO, interveio para partilhar a sua longa experiência profissional com os participantes, sempre com foco sobre jornalismo humanitário. Nesse contexto, Langa chamou particular atenção sobre informações prestadas no terreno por porta-vozes de diferentes instituições, do governo ou de organizações humanitárias.
“Os porta-vozes seguem objectivos e agendas das respectivas instituições, e o jornalista deve sempre procurar equilibrar as informações que eles divulgam, procurando ouvir outras fontes relevantes, disse. Segundo a sua experiência, este cuidado deve ser tido em conta, incluindo quando se tratando de informações provenientes de forças de defesa e segurança, como a Polícia, pois amiúde tais informações contêm acusações que colocam em perigo a reputação ou mesmo a segurança de pessoas inocentes.
Jornalistas denunciam crimes contra a vida humana e uso de crianças na guerra
Na ocasião, os participantes partilharam suas experiências na cobertura noticiosa, incluindo do terrorismo em Cabo-Delgado, alertando para a instrumentalização de crianças e a manipulação de algumas crenças religiosas para o aliciamento de jovens e de adolescentes.
“Em Moma, na Província de Nampula, havia mesquitas onde as pessoas eram pagas para rezar; recebiam dinheiro quando iam rezar. Todos ficamos admirados. Mas sabe-se que em Cabo Delgado (o conflito armado) começou assim e pode ser daí que eles aliciam jovens…” , disse um jornalista de Nampula.
“Há participação de crianças no conflito de Cabo Delgado. Essas crianças são ensinadas a usar armas brancas, como facas e catanas para agredir pessoas. Elas são ensinadas também a apedrejar e a matar; não se sabe o que lhes dão ou lhes fazem ou lhes prometem, mas elas parece que aprendem essas práticas muito rápido, disse um jornalista de Cabo Delgado, acrescentando que “nos últimos tempos é frequente o rapto de mulheres e crianças” .
Já da província da Zambézia os jornalistas partilharam estórias recorrentes de crimes contra a vida humana, associados a ganância por suposto enriquecimento rápido. De diferentes distritos desta vasta província, chegam aos órgãos de comunicação social notícias sobre decapitação de crianças e de adultos, para lhes extrair partes do corpo, que, na crença, dos compradores, lhes proporcionariam riqueza imediata. Estes crimes hediondos atingem sobretudo pessoas sofrendo de albinismo e têm continuado como práticas frequentes ao longo de anos, sobretudo em distritos situados na fronteira de Moçambique com o Malawi, disseram os jornalistas.
Mulheres jornalistas e o equilíbrio de género nas redações
Num evento com forte equilíbrio de género, com 11 mulheres e 9 homens, a posição das mulheres nas redações não podia ser deixada sem debate. Nessa perspectiva, as participantes consideraram que tem vindo a registar-se, nas redações, uma redução significativa do “patriarcado” ,sendo ainda maior o desafio no plano domestico e familiar.
A este propósito, as jornalistas referiram que já estão em implementação, nas redações, políticas ou códigos de género que orientam os profissionais de comunicação social no exercício das suas actividades informativas.
Nas palavras da jornalista Ernesta Missage, da RM em Quelimane, “a discriminação de género está sendo eliminada nas redações, mas ela ainda se mantém forte junto dos nossos parceiros, nas nossas casas e famílias.” Um dos sinais de mudança de políticas nas redações é a existência, em números crescentes, que mulheres jornalistas fazendo a cobertura de desporto e de política, temas antes exclusivos dos colegas de sexo masculino.
Contudo, na opinião de Isaura Afonso, jornalista da RM em Tete, o mais importante é a determinação e o profissionalismo da mulher, independentemente da maternidade, casamento ou outras responsabilidades próprias da mulher. “A nossa atitude como profissionais é que conta. Não basta estar na redação e culpar o homem por falta de espaço. Eu como mulher é que tenho que saber ser profissional, definir o meu tempo. Por vezes fica difícil conciliar os deveres de mãe …quando o filho adoece, com os deveres da redação”, frisou.
Um dos resultados imediatos do seminário foi a definição de temas de pesquisa jornalística, em torno da problemática da comunicação sobre violência baseada no género em contexto de crise humanitária. Nessa medida, cada participante vai realizar pesquisas jornalísticas em torno do assunto escolhido, como forma de influenciar a inclusão, na agenda das redações, de jornalismo humanitário sensível ao género.
O curso foi realizado no âmbito do programa IGUAL, de apoio à sociedade civil, financiado pela Embaixada do Reino dos Países Baixos e implementado em parceria com o Centro de Aprendizagem e Capacitação da Sociedade Civil (CESC).