Desenvolvimento Comunitário

Kubhatira de Manica ou a reserva de fetos para casamento futuro

A Odvalda tinha apenas cinco anos de idade, quando os pais a deram em penhora a um ancião, na condição de “reserva”, para futura esposa do filho deste, ele também menor de idade. Aos 10 anos, porém, a Odvalda conseguiu fugir do “lar”, e encontrar acolhimento numa família solidária. Hoje, com 21 anos de idade, ela só sente profundo ódio dos pais. Não se lembra, nem quer lembrar-se, e jura: “se um dia me cruzar com eles vou chamar a Polícia!”

A Odvalda foi separada dos pais em tenra idade, a coberto de uma prática tradicional estranha, da província central de Manica, denominada Kubhatira, palavra cujo sentido é “reservar”.

“Reserva” de bebés para casamento futuro

Na base do Kubhatira, pais podem “ceder” suas filhas de tenra idade, a outras famílias, como “reserva” para futuras esposas, ou de pessoas já adultas ou de outras crianças de sexo masculino, ou ainda de…espíritos! Nos seus futuros “lares”, para onde vão ser transferidas aos seis anos de idade, estas crianças vão crescer privadas de quaisquer direitos e liberdades, sendo, pelo contrário, submetidas a regimes de duro trabalho infantil!

Como regra geral, o kubhatira consuma-se com a criança ainda na fase da gestação, em que o pretendente paga um “seguro” aos pais, que pode ser em dinheiro, gado ou culturas agrícolas, para assegurar que esta, quando adulta, não case com ninguém da sua escolha!

Logo ao primeiro ano de vida, a criança é levada e apresentada à sua futura “família”. Ao completar entre 5 e 6 anos, ela é definitivamente desligada dos pais, e entregue à família que a “encomendou”, quando ainda no ventre da mãe. Assim, ela vai crescer nesta casa, cumprindo os deveres próprios de …”noiva”. O que, “a priori”, exclui o direito à educação!

Além dos pais, os tios podem também envolver-se nesta categoria de “negociatas”, entregando sobrinhas a famílias onde elas vão viver como mão-de-obra infantil! Este é o caso de Teresa Maria, vendida quando tinha 9 anos de idade, por uma tia, irmã do pai. No seu caso, a Teresa foi “reservada” de forma abstrata: para um marido não identificado!

Por que entregar a criança em tenra idade?

Na procura de “explicações” sobre esta prática, SEKELEKANI percorreu alguns distritos da província de Manica, nomeadamente Mossurize e Manica.

Segundo as informações aqui recolhidas, a kubhatira pode ocorrer de forma voluntária ou involuntária. No primeiro caso, ela pode decorrer de mera vontade das famílias “contratantes”, para cimentar laços interclânicos ou de boa vizinhança. No segundo caso ela pode ocorrer em paga de dívidas entre vivos ou a espíritos de pessoas falecidas.

A equipa de pesquisa do SEKELEKANI encontrou um caso da categoria “voluntária” na localidade de Dacata, distrito de Mossurize. Nesta localidade, é comum que, no nascimento de uma menina, amigos da família procedam ao “Kuguirraguira Mutanda”, expressão que significa “dar seguro ou garantia”. Em tal circunstância, o futuro marido da bebé assume a responsabilidade de cobrir as despesas de crescimento daquela, desde a alimentação a roupas, bem como presentes periódicos aos pais.

Assim que complete um a dois anos de vida, a criança é levada à residência do futuro esposo, a quem ela é “apresentada”. Ao completar entre a 6 a 7 anos idade, é definitivamente levada ao seu novo lar aonde vai crescer, até assumir o papel de esposa.

Nas palavras de António Mazite, líder comunitário de Dacata, a transferência prematura da criança para o seu “lar” visa impedir que, à medida que cresça, conheça e se interesse por outros rapazes. Por outras palavras: a kubhatira impede as mulheres de desenvolverem e viverem suas próprias escolhas de casamento, desde o ventre da mãe!

Alguns homens chegam a recorrer a feitiços para garantir que nenhum homem se aproxime da sua esposa prometida, caso em que o “intrometido” pode, inclusivamente, vir a perder a vida! remata António Mazite.

Já na localidade de Chaíva, distrito de Mossurize o kubhatira aparece associado a causas involuntárias, nomeadamente, como resposta a exigências de espíritos de defuntos. Através de um curandeiro, os espíritos do membro de uma determinada família podem exigir que lhes seja destinada uma “esposa” – que eles mesmo identificam! – sem o que, a paz e a prosperidade na referida família estariam em perigo! Esta mulher leva a designação de Mbuya, ou seja a pessoa em quem repousam os espíritos protectores da família.

“Quando esta menina atinge a idade adulta, é-lhe atribuído um marido físico, que pode jovem ou idoso, polígamo ou não, porém carregando sempre o epiteto de Mbuya”, segundo explica Domingos Gandija, Chefe do posto administrativo de Chaíva.

Quanto vale a liberdade de uma criança?

O valor de “reserva” de uma criança de sexo feminino há-de variar das motivações e circunstancias à volta: em casos em que esteja em causa apenas a amizade entre famílias, o custo há-de ser mais baixo, do que quando a Kubatira se destine a cobrir dividas: há casos em que pais sem dinheiro pagam os serviços de um curandeiro através da entrega de uma menina!

O valor da “reserva” pode ainda depender do padrão económico de uma zona. Assim, em Chaíva por exemplo a “reserva” de uma esposa ronda entre os 20 e os 30 mil meticais, enquanto que em Dakata ela pode chegar a 100 mil meticais. A razão aparente imediata é a influência do rand sul-africano, nesta zona fronteiriça.

Para além de valores monetários o pagamento da “reserva” pode ainda ser efectuado por meio de cabeças de gado ou de culturas agrícolas.

Independentemente das motivações e modalidades, a pratica da Kubhatira ganha mais incidência sobre as camadas populacionais mais pobres e marginalizadas. O que apenas serve para perpetuar esse seu estatuto.

Vítimas guardam mágoa dos pais

A possibilidade de mudança de vida, por parte de raparigas vítimas destas práticas, pode ocorrer de duas maneiras: ou através de fuga, para aldeias distantes, ou por intervenção de familiares próximos. Porém a primeira opção é que mais é utilizada.

Memory Tendai de 12 anos de idade foi separada da família ainda muito nova; por isso ela nem tem qualquer memória de como tudo aconteceu. Ela foi resgatada pelo irmão mais velho, há cerca de dois anos.

“Quando me levaram para a casa de quem me tinha “reservado”, o homem que seria o meu marido encontrava-se ausente, na África de Sul e abandonei aquela casa sem nunca o ter conhecido, conta Memory.

Já a Odvalda seguiu processo foi diferente: ela conseguiu fugir da casa do marido quando tinha 10 anos de idade. “Quando fugi uma família acolheu-me. Agora vivo sozinha e pago a renda da casa com os rendimentos que tenho da venda de verduras”, esclarece ela.

Quando questionadas sobre os seus sentimentos relativamente aos pais, todas as raparigas entrevistadas são unânimes em afirmar que, para além do contacto já perdido com estes, elas perderam sobretudo confiança neles. “A minha imagem dos meus pais é muito vaga. Acho que se os encontrasse iria denuncia-los à Policia, para serem presos. Estou muito magoada: não dá para perdoar; é difícil”, desabafa Odvalda.

Há quatro anos, a Rebeca Daniel escapou de uma união negociada entre o pai e aquele que seria o seu marido. O pai engendrou um plano para que o “comprador” a interceptasse pelo caminho, quando ela fosse buscar água na fontenária. Porém, ao longo do percurso para a casa daquele, a Rebeca chorou tanto, que despertou a atenção de muita gente, tendo assim escapado de um cruel destino, imposto pelo pai!

Desde então, a Rabeca desligou-se dos pais, e afirma não manter com eles qualquer contacto. Aliás a mãe chegou a ser detida pela polícia, mas quando saiu ela mesma preferiu não ter a filha de volta, temendo que o pai voltasse a tentar vende-la.

A intervenção da Procuradoria

De acordo com a Procuradoria Distrital da República, este tipo de práticas continua muito frequente. Em dois casos reportados pela PGR, um ocorreu como pagamento de serviços prestados à família da vítima por um curandeiro, e outro em pagamento de uma vaca alugada para trabalhos de lavoura e que morreu ao serviço da família da vítima!

Aos autores de tais práticas a lei prevê penas de prisão que variam de dois a oito anos.

*Imagens Ilustrativas

Por: Célia Sitoe (SEKELEKANI)

Imagens: Taissone Rangeiro

 

 

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