Corrigindo “erros de percurso”
Em diferentes aldeias das províncias de Nampula e Zambézia, estas mentoras têm vindo a granjear prestígio e respeito, mesmo entre os pais mais conservadores, ao lograrem resgatar meninas adolescentes, de uniões matrimoniais forçadas, e levá-las de volta aos bancos da escola, garantindo-lhes, ao mesmo tempo, a cobertura dos custos com uniformes e material escolar.
Algumas destas raparigas, mães adolescentes e desprovidas de qualquer apoio social, após frequentarem sessões de educação sobre seus direitos sexuais e reprodutivos, aderem à iniciativa, tornando-se, também elas, mentoras, aptas a expandir a iniciativa. Implementa a iniciativa a Associação Coalizão da Juventude Moçambicana, através de um programa cujo objectivo é contribuir para que a rapariga seja cada vez mais activa na sociedade, na promoção dos seus próprios direitos, da sua saúde sexual e reprodutiva, com vista ao seu empoderamento social pleno.
Sem preocupação em receber qualquer remuneração pelo trabalho que realizam, as mentoras justificam o seu empenho dizendo que “erros de percurso” de raparigas sem qualquer preparação nem experiência de vida, muitas vezes cometidos por decisões dos pais e falta de informação, não devem constituir chaga para o resto das suas vidas, mas sim motivo de aprendizagem para a mudança. O seu principal foco é combater a prática de casamentos prematuros e consequente gravidez precoce, a partir de dentro das suas próprias comunidades, e expandindo-se para mais longe. “Nós ficamos muito tocadas com a situação destas meninas; o nosso objectivo é ajudar a reduzir os casamentos e a gravidez precoces. Nós procuramos ajudá-las na mudança de comportamento, inclusive encorajando-as a optarem por fazer pequenos negócios, como forma de ajudar os pais a diminuir a pobreza, causa que estes evocam para força-las a unirem – se cedo, muitas vezes com homens muito mais velhos do que os seus próprios pais ”, dizem as mentoras.
De acordo com o dicionário da Língua Portuguesa, mentora é a pessoa que, pela sua sabedoria ou experiência, ajuda outra como guia ou conselheiro ou a pessoa que inspira outras. Esta definição encaixa perfeitamente no trabalho desenvolvido por estas jovens activistas. Elas promovem sessões de esclarecimento e de aconselhamento a outras raparigas nas aldeias, em condições que favoreçam diálogos abertos, ajudando as beneficiárias a orientarem-se, em contextos onde não há acesso a quaisquer serviços de informação sobre os seus direitos sexuais e reprodutivos.
Em contextos onde predomina a tradição, marcada pelo domínio do Homem sobre a Mulher, ou onde as culturas africanas se acham fortemente islamizadas, sem espaço de autonomia para a mulher, as sessões de aconselhamento dirigidas pelas mentoras são um dos raros espaços em que adolescentes podem tirar dúvidas, informar-se e decidir melhor sobre o seu futuro.
O Programa Rapariga Biz
O programa “Rapariga Biz” é uma estratégia de apoio no desenvolvimento de competências de raparigas vulneráveis dos 10 aos 24 anos de idade, nas áreas de comunicação, participação, saúde e direitos sexuais e reprodutivos, negociação, empoderamento económico e direitos humanos. O programa está ancorado numa abordagem de espaços seguros, os quais permitem confidencialidade e solidariedade entre as raparigas.
Este programa é implementado pela Associação Coalizão da Juventude Moçambicana e pretende contribuir para que a rapariga seja cada vez mais activa na sociedade, na promoção dos seus próprios direitos, da sua saúde sexual e reprodutiva com vista ao seu empoderamento pleno.
Com início de implementação em 2016 e término previsto para 2019, Programa “Rapariga Biz”, almeja contribuir para:
- Aumento do uso dos serviços de saúde, em particular do planeamento familiar pelas raparigas;
- Redução das gravidezes precoces ou indesejadas (incluindo as suas complicações como o caso da fístula), e casamentos prematuros na comunidade;
- Redução de infecções de transmissão sexual, incluindo o HIV e SIDA, nas raparigas;
- Redução da taxa de abandono escolar por raparigas ao nível das comunidades;
- Melhorar a autonomia e participação das raparigas através da sua integração nas associações e grupos existentes, nos media e ao nível dos órgãos de decisão comunitários;
Redução da dependência financeira através da melhoria das suas habilidades em poupança financeira e gestão de pequenos negócios.
Mentoras servem de exemplo para outras raparigas
Nurquia é mentora na Ilha de Moçambique; mas antes, ela mesma foi beneficiária destas iniciativas de aconselhamento. Ela conheceu o programa quando engravidou aos 16 anos. Na sua comunidade ela era vista com “maus olhos”, como uma rapariga de má conduta social. Após receber conhecimentos sobre direitos sexuais e reprodutivos da rapariga, ela mesma tornou-se mentora, ajudando outras meninas, vítimas de experiências semelhantes à sua. Ela diz que, nos dias que correm, em vez de múrmuros de maledicência, ela já recebe elogios da comunidade.
“Ao longo do trabalho acabei conquistando o respeito da comunidade, e os pais agradecem por verem as suas filhas transformadas e a verem a vida de forma diferente”, afirma Nurquia. Ela diz que uma das razões que a motivou a associar-se a esta causa, é o facto de, na sua região, as meninas serem ensinadas que devem casar aos 15 anos, antes que percam a virgindade. “Mas tais casamentos são geralmente realizados com homens mais velhos, amiúde já com duas ou três esposas, o que propicia a frequência de infeções de transmissão sexual, incluindo do HIV”, alerta.
Levar a rapariga de volta à escola
Levar as raparigas de volta à escola ou promover o seu ingresso e retenção constitui um dos objectivos centrais do trabalho das mentoras. Patrícia Helena é mentora há dois anos. Ela refere que o que a motivou a envolver-se neste trabalho é o amor ao próximo. “Eu me senti na obrigação de ajudar outras meninas da minha comunidade; senti o sofrimento delas e quis ajudar a aliviar essa sua dor. Muitas outras meninas desistiram desta actividade, devido as condições difíceis em que trabalhamos, mas eu decidi continuar, pois percebi que devia fazer este trabalho”, afirma a Patrícia.
Entre os seus casos de sucesso, Patricia conta que ajudou uma menina a regressar aos bancos da escola, depois dos pais a terem tirado de lá, forçando-a vender bolinhos fritos na rua. Para facilitarem a sua frequência nas sessões de mentoria, as mentoras compravam-lhe os bolinhos fritos. Pouco depois, as mentoras iniciaram a sensibilização dos pais da menina, para que a deixassem regressar a Escola, garantindo que o programa implementado pela Coalizão iria custear as despesas do uniforme e do material escolar.
Para as beneficiárias, a oportunidade de receber aconselhamento e ajuda é vista como solução de um problema que podia perdurar por muito tempo, devido à falta de condições para cobrir custos básicos da escola. “Antes eu necessitava de material escolar e quando surgiu esta oportunidade fiquei muito feliz. Hoje tenho 13 anos e estou a frequentar a nona classe graças a ajuda que tive”, afirma Milena, uma rapariga que beneficiou de apoio para retornar à escola.
Mãe de filho nascido de violação
Na cidade de Nampula a equipa do SEKELEKANI conheceu um pouco do trabalho de Muala Bulcado, mentora, que acolheu em sua casa uma rapariga, Maia Domingos, mãe de um filho nascido de uma violação, praticada por um desconhecido.
Maia conta que viva com a mãe, em casa do padrasto, quando foi passar a noite do fim de ano de 2004 na Ilha de Moçambique. Nessa noite, conta ela, quando passava por uma rua, um homem tê-la-á agredido e violado, pondo-se logo em fuga. Desse acto ficou uma gravidez indesejada, de um desconhecido.
“Quando voltei para cidade, passados dois meses comecei a passar mal e os mais velhos disseram que eu podia estar grávida”, conta Maia , que teve uma gravidez complicada e de risco, que lhe tirou muito peso. Devido a má alimentação e aos traumas por que passou ao longo do período da gravidez, o seu peito não tinha sequer leite, para amamentar o bebé, pois do mesmo apenas escorria água. Um dia, num Hospital de Nampula, a mentora notou uma discussão que se desenvolvia entre a Maia e a mãe. O teor da discussão chamou à sua atenção de Muala, que decidiu aproximar-se de ambas. Neste contacto, Muala foi saber que mãe e filha estavam em discussão porque não tinham abrigo, pois o marido e padrasto as havia expulso de casa. A razão da expulsão é complexa: a mãe acusa o marido de ter sido ele o violador da filha, mas aquele e esta negam veementemente, pois Maia evoca a violação de que teria sido vítima na Ilha de Moçambique, portanto longe de Nampula e do padrasto. Assim, a Maia sofre a dupla angústia de ter provocado o divórcio da mãe, devido a accão de um homem que ela jamais vai conhecer e o qual, por sua vez, também não deve, certamente, saber que a engravidou. Como vida com a estória, Muala decide dar abrigo temporário a ambas, que vão permanecer em sua casa durante duas semanas. Nesse período, Muala oferece à Maia aconselhamento e informação sobre os seus direitos sexuais e reprodutivos da rapariga.
Mas, no fim, Maya e o seu bebe não têm qualquer abrigo fixo e seguro, nem meios de subsistência. Para se abrigar, Maia oferece-se a tomar conta de casas de pessoas que pretendam ausentar-se por algum período, ou viajar, assim percorrendo a aldeia, de casa em casa. Para sobreviver, oferece-se a recolher e transportar água em latas, para vizinhos, que lhe pagam entre 5 a 10 meticais pelo serviço. Mas ela diz que quer regressar à escola e sonha em formar-se como engenheira informática. Para tanto, espera a ajuda da sua mentora.
O combate a casamentos prematuros
A prevenção e, eventualmente, a eliminação de casamentos prematuros está na agenda de várias organizações e do governo moçambicano. Entretanto para o alcance desta meta a mudança de comportamento é fundamental. Nas províncias de Nampula e Zambézia muitas raparigas, menores de idade, são vítimas, ora de pais gananciosos, que as tomam por “mercadoria” a ser cedida a homens muito mais velhos do que elas, ora de mera falta de informação e desconhecimento sobre os riscos de gravidez precoce. Perante estes casos, as mentoras não medem esforços na tentativa de resgatar ou impedir uma rapariga de cair em tais riscos.
Este é o caso de Beatriz, uma rapariga de 14 anos de idade. Naquela tenra idade, a Beatriz foi obrigada a casar com um homem muito mais velho do que ela, e que já tinha outras duas mulheres. Um mês após o “casamento” a Beatriz começou a frequentar as sessões de mentoria. Pouco depois, esclarecida, decidiu fugir e regressar a casa dos pais. “Esse senhor …era um daqueles barbudos, com cabelos brancos e cheio de rugas, e eu era a terceira mulher dele. Eu nem sequer o tinha visto antes. O meu pai apresentou-me a ele em casa e fizemos um casamento muçulmano”, recorda Beatriz. Nas sessões de mentoria, Beatriz conta que obteve conhecimentos sobre seus direitos sexuais e reprodutivos, o que lhe deu forças para abandonar o “lar” que o pai lhe havia imposto. De regresso a casa, conseguiu convencer os pais, de que aquele não era melhor caminho para ela, e eles anuíram. Ela garante que no próximo ano vai regressar à escola, e está determinada a ajudar outras meninas a seguirem o seu exemplo.
iniciativa própria, acreditando que, assim, iria minimizar a pobreza que passava junto dos pais, onde era difícil garantir, sequer, uma refeição condigna por dia. Entretanto ela deu à luz um bebé com deficiência congénita e os médicos já interromperam os tratamentos, alegando que nada mais pode ser feito para salvar a criança. No meio de muito sofrimento, a Carolina começou a participar das sessões de mentoria. Numa primeira fase o seu marido não apoiava a sua participação nestas sessões, alegando que os ensinamentos que lhe iriam dar iriam leva-la à má conduta. Mas ela persistiu. E parece, agora, encarar a vida de nova maneira. E conta:
“No início do casamento, eu o meu marido vivíamos bem; ele comprava-me roupa e me dava algum dinheiro. Mas agora quando lhe peço alguma coisa ele diz:” vai pedir aos teus pais!”. Ele já não cuida de mim. Penso em voltar para a casa dos meus pais; mas ainda não lhe falei porque ainda estou a analisar. Conheci as mentoras e elas me aconselham, agora vejo a vida de uma maneira diferente, me sinto mais forte hoje”, afirma Carolina.
Já no distrito de Rapale, ainda em Nampula, a nossa equipa de pesquisa cruzou-se com três meninas, por sinal amigas: Nenita, Soraya e Guilhermina, todas casadas aos 13 anos.
Soraya Marcelino justifica que casou-se precocemente por que estava grávida e não queria que o filho ficasse sem lar. Com apenas a quinta classe de escolaridade ela abandonou a escola. Mas já a Soraya aprendeu, entretanto, a cuidar da sua saúde sexual reprodutiva, tal que começou a fazer planeamento familiar, para espaçar os períodos de gravidez e assim poder regressar à escola.
Por seu turno, Nenita António e Guilhermina de Castro afirmam ter casado na expectativa de aliviar a pobreza. Os seus pais foram os principais impulsionadores desta forma de pensamento motivados pelo ditado, nos termos do qual os pais dizem às filhas: “tenho que comer do teu sal antes de morrer”. Com estes dizeres os pais forçam as filhas a se casarem cedo, como forma de receberem alguma “compensação” por os terem gerado e criado.
Por seu lado, Milarda, mentora há cinco anos, refere que este trabalho não é fácil, pois deve-se conhecer o perfil de cada uma das beneficiárias e ajustar o programa de aconselhamento ao mesmo perfil. Outro constrangimento está associado à reação dos pais, geralmente muito negativa, pelo menos nos primeiros contactos. “ Eu própria me beneficio muito, aprendendo com as histórias de cada uma das raparigas aconselhadas, refere Milarda.