Um total de 75 mulheres, de faixas etárias entre os 15 e mais de 50 anos, foram operadas à fístula, no âmbito de uma campanha decorrida em Janeiro último, na cidade de Nampula e realizada pela Associação Focus Fístula Moçambique, em parceria com o governo e o Centro de Estudos e de Pesquisa de Comunicação SEKELEKANI.Segundo a Focus Fístula, uma ONG moçambicana, cerca de 2,300 mulheres jovens contraem, todos os anos, vítimas esta doença, em Moçambique, acabando muitas delas por viver ostracizadas socialmente.
As mulheres que beneficiaram esta campanha viajaram dos distritos de Nacala, Monapo e Nampula movidos pela esperança de encontrar solução que ponha termo ao sofrimento e desgaste físico, emocional e social, de vários anos.
Entre as formas mais traumatizantes de que sofrem mulheres com fístula obstétrica incluem-se o sentimento de vergonha, o abandono pelo marido e a discriminação na comunidade, resultando em queda de auto-estima.
Uma equipa de pesquisa do SEKELEKANI seguiu no local o decurso desta campanha, e em conversa com algumas das pacientes, recolheu as suas estórias de dor e sofrimento, bem como as expectativas de retorno a novas vidas, de pleno convívio nas respectivas comunidades.
Entre chagas de maternidade precoce e marcas de condutas desumanas
Ana é o nome fictício de uma menina que aos 13 anos engravidou e teve complicações ao longo do desenvolvimento da gravidez. O drama terminaria com um parto arrastado e consequentemente a fístula. Como a Ana, há muitas raparigas e mulheres sem esperança de obter tratamento à fístula e voltar a uma vida com dignidade e normal convívio junto da sua comunidade.
Depois de ter cumprido com os usos e costumes tradicionais da zona, de iniciação à vida adulta, um ano depois desistiu de estudar para casar. Nessa altura a Ana requentava ainda a quinta classe de escolaridade.
Segundo ela conta, o seu caso foi de casamento prematuro, com um jovem também imaturo, de 17 anos, contrariamente a outras meninas, que coagidas a uniões matrimoniais com homens tão adultos quanto os seus pais ou avós.
Já na sala, à de espera da sua vez à cirurgia, no bloco operatório do Hospital Central de Nampula, em conversa com o SEKELEKANI, Ana revela que aguardava pela operação com muita ansiedade, pois quer ver-se livre desta incomoda enfermidade.
“Eu espero sair daqui curada, pois estou há quase dois anos com esta lesão e já não suporto mais! Já não tenho amigas; não faço trabalhos domésticos como fazia antes. Estou muito limitada porque não posso fazer esforço físico e, sinto-me mal, sem valor algum na sociedade”, afirma ela.
Sobre o seu futuro depois da cirurgia, Ana diz apenas querer regressar a casa “curada”; porem não pensa em regressar à Escola, pois já perdeu as suas amigas, que estão agora em classes avançadas ou casaram-se.
Aqui conhecemos também a Maria, que sofre de fístula há 10 anos, altura que deu à luz um nado morto, em consequência de um serviço de parto arrastado, que lhe provocou graves lesões. Isso ocorreu no distrito costeiro de Nacala.
O parto ocorreu fora do hospital, tendo sido assistido por uma parteira tradicional. Quando, já no hospital, ela soube que tinha contrariado fístula e comunicou o facto ao marido, que logo a abandonou e foi juntar-se a uma outra mulher.
Mas a Maria, além da fístula, transporta consigo um outro desafio de vida: ela tem deficiência física. Abandonada pelo marido e discriminada junto da própria família, pelo mau cheiro gerado pela incontinência de seus dejectos, a Maria conseguiu sobreviver com a ajuda de pessoas caridosas dentro da comunidade, que lhe providenciavam alimentos e ajudavam na sua higienização.
Maria narrou, com muita emoção, diferentes episódios de uma vida sofrida, e não evitou que lhe caíssem lágrimas, quando chegou a sua vez de entrar na sala da cirurgia. “Não acredito que vai ser hoje …passam 10 anos!” desabafa ela.
O drama das mulheres com fístula é comum. Todas sentem-se inúteis e sem vontade de continuar a viver.
Transmissão de experiência a mais profissionais de saúde
Esta campanha de tratamento da fístula, liderada pelo médico-cirurgião Igor Vaz, serviu também para transmitir experiência no tratamento desta doença a novos profissionais na área, nomeadamente médicos obstetras, cirurgiões, anestesistas, enfermeiros e pessoal de apoio.
A Focus Fístula já realizou campanhas similares em várias províncias do país, dentre elas, Niassa, Inhambane e Gaza com o objectivo de ajudar as mulheres que sofrem desta doença a libertarem-se dela e reconquistar vida digna.
A cirurgia não basta para resolver o problema
“A fístula obstétrica em Moçambique, à semelhança de outros países com a mesma doença, é um problema político e não apenas do sector da saúde. Para o seu combate eficaz é preciso unir esforços de toda a sociedade”, diz o conceituado médico-cirurgião, Director da Focus Fístula,Igor Vaz.
Fazendo uma análise do caso de Moçambique, Igor Vaz destaca alguns dos instrumentos legais e de política importantes, aprovados, nomeadamente a Lei de Prevenção e Combate a Uniões Prematuras – uma das práticas causadoras de maternidade precoce.
Por seu lado, os Ministérios da Educação e Desenvolvimento Humano, Transportes e Comunicações, Obras Públicas, Habitação e Recursos Hídricos e o do Género Criança e Acção Social, têm estado empenhados, nomeadamente, na educação da rapariga; melhoramento das vias de acesso; na construção de mais escolas e hospitais e, na educação e empoderamento da rapariga e da mulher. Mas, a pergunta básica ainda persiste: Onde está o problema?
É fundamental a resposta da pergunta base: O que é que está a falhar? Se os programas de Saúde Materno-Infantil que envolvem os ginecologistas e os obstetras, funcionassem devidamente, provavelmente uma parte destes casos de fístula não existiriam”, sublinha ainda Igor Vaz. Isto significa que a luta contra a fístula deverá ser feita a partir a partir da base, pois o grande trabalho está nas medidas de prevenção.
Igor Vaz lembra que no ano 1986, em que trabalhou na Província de Inhambane havia casos de fístula obstétrica. Disse que nessa altura eram muito poucas as enfermeiras formadas. Entretanto, a estratégia foi envolver as matronas (parteiras tradicionais) para contribuírem na redução dos casos da fístula.
O cirurgião lembra ainda que nessa altura, a equipa médica que trabalhava no Hospital de Chicuque, na Cidade da Maxixe, Província de Inhambane contactou e explicou às médicas tradicionais sobre os perigos de um parto não assistido na unidade sanitária. Vaz voltou ao passado para explicar que é papel das parteiras e enfermeiras sensibilizar as mulheres para evitarem partos fora dos hospitais.
“A província toda devia ter no total quatro médicos moçambicanos, e dentre eles, apenas um obstetra e os restantes eram de medicina geral; mas fez-se, ainda assim, algum trabalho de realce”, recorda o cirurgião.
Neste momento, estima-se que cada província tenha cerca de 50 médicos e 400 enfermeiros, dependendo da extensão da rede sanitária de cada província, entretanto os números de casos de fístula continuam a crescer.
Para alterar este quadro, será necessário melhorar o trabalho do sistema da saúde materna, dos centros de saúde e dos hospitais periféricos, pois urge restaurar a credibilidade das populações sobre a qualidade do trabalho das unidades sanitárias locais, refere o nosso interlocutor. Saúde dizem que os Assim, o envolvimento de lideranças comunitárias, de organizações sociais ou partidárias seria crucial na disseminação da informação e luta contra a fístula.
. A gravidez deve ser, sempre, controlada e, para as mulheres que vivem longe das unidades sanitárias devem saber com antecedência se o hospital tem condições para atender partos complicados ou se tem casas de “mãe espera”.
Algumas unidades sanitárias têm capacidade para saber se a gravidez é de alto risco obstétrico e se a mulher precisará de outro tipo de intervenção, de modo a ser transferida para uma unidade sanitária onde se pode fazer cesariana.
O cirurgião disse ainda que Moçambique melhorou muito em termos de vias de comunicação comparando com 40 anos atrás. Se a mulher souber com antecedência de um mês que terá um parto complicado, ela pode deslocar-se e chegar a um hospital com condições para assisti-la, antes das datas da previsão do parto.
Trabalho de grandes equipas e muitos meios técnicos
Na campanha de tratamento realizada na Cidade de Nampula, Igor Vaz e a equipa médica por ele liderada, operou, com sucesso, 42 mulheres, das quais metade tinham fístulas complexas. Outras 75 estavam à espera , sendo provenientes de três distritos, nomeadamente Nacala, Monapo e Nampula . “ As cirurgias muito complexas podem durar entre seis a oito horas e mobilizam grandes equipas médicas compostas por cirurgiões gerais, urologistas, ginecologistas, anestesistas, intensivistas, fisioterapeutas, psicólogos e pessoal de enfermagem formado para o atendimento destas doentes”, explica o cirurgião Igor Vaz.
Para além de uma equipa muito grande, estas operações requerem o uso de salas de operações por muitas horas: dada a exiguidade de salas, isto pode significar operar apenas uma a duas pacientes de fístula, por dia. Para além disso, é necessário garantir o internamento dessas pacientes por três a quatro dias, pós operação.
Entretanto, o governo moçambicano tem vários programas de combate à fístula que interagem com outras iniciativas de Organizações Não-Governamentais que trabalham na área da saúde para o combate da doença.
Segundo o cirurgião, a saúde pública deve melhorar a área preventiva, nomeadamente, as vacinas, consultas pré-natais, programas de educação e de formação. Por sua vez, a saúde materno-infantil devera trabalhar mais na sensibilização sobre o parto seguro, formação de pessoal de enfermagem e de medicina. E, a assistência médica devera enviar técnicos formados para as unidades sanitárias. “Se esses três departamentos funcionassem a cem por cento, não haveria muitos problemas de fístula em Moçambique”, explica Vaz.